in

A INJUSTIÇA DE SORTE

AVvXsEigGKs7vOXmtcHShanPAzx1qrVJMnNodQ0QZt7utYNmVr34szkz MfD RlzO9SeVFSCdIcByZxzWlxa709VSouSmxq1xPWKSNHgmK2iUR7ClFmBfDilCex4PaWl1 lKFANRa8MaIFmTBJr hVEj8laNlTOncRZQvHNNdTipLGbyt KR7oKzA5Nxy7sDQQ=w320 h179

Você talvez conheça essa história: em 1981, na Universidade de Syracuse, no estado de Nova York, uma aluna de 18 anos passava por um parque à noite para voltar ao seu dormitório quando foi violentamente estuprada e espancada. Ela sobreviveu, prestou queixa, e alguns meses depois o estuprador (um jovem negro) foi preso e condenado. 

AVvXsEgd36G9ZxVFIwhQUisY2YVvyrQzNWBTjjUiZiE4myfajkOkoi6Y2y5oz0gw1DW68 jOVZgM4bVnt3nmxcWXYFi08rVF3s4eQRf5Y WFmJr6twHxsfks GjqRgTKgjsXrn4moOvdhAyZ2k gTMVMEwHAquWS6JxOm7EPqncejWnYTqew8vZS3thwFmtlhg=w133 h200

A vítima era Alice Sebold, que virou escritora bestseller com Uma Vida Interrompida e ficou muito famosa quando seu livro foi adaptado para o cinema (Um Olhar do Paraíso), em 2009. Mas o livro que a lançou foi publicado em 1999: Sorte (Lucky), onde ela narra o terrível estupro que sofreu em 1981 e o inferno que virou sua vida. Eu li esse livro uns treze anos atrás por recomendação de uma leitora. Voltei a lê-lo agora por causa dos novos desdobramentos.

AVvXsEiunflaqNbfe3tUWfKHAL6 DWhjLn64lHf9 SeRfmGMS89BiEHP83H33n9CaPuRoKK953Sc 0ZA7UKdMzjHnmdj3JsjPdTzvEKUV1wpOwT1Ue aLLlT8OPxkETVNYgjmOPyILFeYLc3baoR5 YxWvorEIr4ez2pqW0gYXqyberpFc 9we1GjuQeFcorjw=w132 h200

E quais são esses novos desdobramentos? No início de 2020, estavam adaptando Sorte para a TV. Timothy Mucciante, um dos produtores executivos, percebeu discrepâncias entre o livro de memórias de Sebold e o roteiro. Ele teve dúvidas  — não sobre o estupro que Sebold sofreu (sobre isso não resta qualquer dúvida), mas sobre o julgamento. Por isso, abandonou a produção em junho, mas contratou um detetive particular para investigar as evidências contra o condenado por estupro Antony Broadwater, e se convenceu da inocência dele. Broadwater contratou um advogado, que revisou a investigação. 

AVvXsEjIz1taoQCwIlZ11eM 6dVJl9C84FqdadmpUx6ZnH4F8WDJ6JEKROcB0vjFt1zityOuPAK2syvhj9KsU1NfwIguvb D0ndhw 2sulKEWeBFlGFp0KT0fCO CzTZLb2on3QI1qL191vSssomlvHBMRpLOeX2KV220QV4x5xAzbDz9bbsFNciaQVMaaHOSg=w158 h200

Por conta da sua condenação, Broadwater passou 16 anos na prisão. Foi solto em 1998 (antes de Sebold publicar Sorte). Em 1981, quando Sebold o viu na rua e achou que era ele o estuprador, ele tinha 20 anos e havia acabado de voltar pra Syracuse para ver seu pai doente. Em Sorte (que tem esse nome irônico porque um policial disse a Sebold que ela teve sorte de não ter sido morta, já que uma menina havia sido assassinada no mesmo local do estupro), Sebold conta: “Fiz um retrato falado a partir de microfilmes com feições raciais. Fiz isso junto com um policial e fiquei frustrada porque nenhuma das feições do meu estuprador parecia estar entre os cinquenta e poucos narizes, olhos e lábios. […] O retrato falado divulgado naquela noite pouco se parecia com ele” (36). 

AVvXsEjZIRmXRhRS67k2qmL1ZCDYvpYjYj9Aar3caLGEpUxgtAtOVLZOMTAQOnd3b tyS55yzoUdbGBeZII1w6zSlZzDURyaEV5vZbqHvsUTADB Ij6b6XDpDu6PMMrkDoUHR1gqYKei Vjghg5NMIfrSPFW8dlhzN9kqkZLA1DxRfuWmHrGBzx RV33qVQEXA=w200 h176

Uma semana depois de escrever um poema chamado “Se eles te pegassem” para um workshop de poesia, descrevendo o que ela gostaria de fazer com seu estuprador, Sebold esbarrou com ele — ou com quem pensou que fosse ele — numa rua perto da faculdade. “Eu só conseguia ver o cara negro de costas, mas estava prestando muita atenção. Repassei minha lista: altura certa, corpulência certa, alguma coisa em sua postura”. E ele, ao ver que estava sendo encarado, disse a ela, “Ei, menina, eu não conheço você de algum lugar?” Ela teve certeza que era ele e que ele se lembrava e estava zombando dela.

AVvXsEh3CPj76P3a o3q53EywnxFeRLtJWtVCXZmo8n3vKSkAIfr7AOrFPNLkSGyGdqgQ5Sz2jI5ur dP42C4HBd KObQEaAAKTGh12yaW6X0IXOnD6Dm9y45Q7DP SbHc2pPigwYehJ5QAvsRqp9wkAgTnEFK

Antony Broadwater hoje, na mesma rua em que Alice Sebold o reconheceu 40 anos antes

AVvXsEisEFtZzagq2rliCdJ6tEf3CzXzeto4tw5jhy3Z eO4uJoWxRlR8ZDf2B8B oGJScIRVuDk9v4MZs XfBvBMW ATW seR7kKpYwUwgvzxFVRcq6ZH m9tuxC6U0HbzVyb8JdZooJU EqQ9vOqnyUHKB67FVRed2NIAzsSe sLNp5JFz74KfprVRM2 Gug=w200 h151

Ela então fez um outro retrato, chamou a polícia, descreveu as roupas dele. E o rapaz, que já tinha ficha criminal — ou pelo menos foi isso que um policial contou a ela –, foi detido. Mas, na hora de identificá-lo num alinhamento de suspeitos (line-up), ela apontou para outro cara que, segundo ela, era praticamente irmão gêmeo. Mesmo assim, a polícia conseguiu que o suspeito (Broadwater) tivesse alguns de seus pêlos púbicos arrancados, e eles batiam com aquele que foi encontrado na vítima.

AVvXsEh4fsspRP4o7fSVuVK 6FrXohLWU2W 1gWphLKcyuo fJ8y4 cxVR2XrU22bI4nWw8sP C 3W2CWFSB45hDJGse5 xuBGlN7bt rMKz4vWGbRPRTthlCS5GK1HtdXqAdP pLVIYWWzYuJYrTB7ducTn24GHKmTmmMlpOQmvJ K18Yki1IMYnn1Sw8Bm8w=w200 h127

Essa forma de análise de pêlos não é mais confiável . Em 2015, o FBI e o Departamento de Justiça reconheceram que esse método forense, que serviu durante três décadas para condenar muita gente  — 14 dessas pessoas morreram ou foram executadas na prisão –, não prestava (será que todos os programas da série CSI vão pro lixo junto?).

AVvXsEh6tfN0Snk885mNJ p UhjYxUwteiM Ctzaa46FQkCH9lnqQ6afhSvhw551rQSug7FpR38kb0Xd6HDKPc lHWiLhaBKg4zyllUb6sCUwdC1zZaPRBYLgpx hFkPSB7clmxwpJ0MGBh8mfB0aEgwSyqWzmSGx0 4JwsQPg8ya2Fpq1Px oG0EZTN71OBPQ=w200 h112

Outro problema, ainda mais evidente, é que pessoas brancas costumam se confundir ao identificar pessoas não brancas. Há vários estudos que mostram que pessoas de uma raça (qualquer uma) confundem pessoas de outras raças (sabe como muitos de nós costumamos achar que chineses são todos iguais? Eles acham o mesmo da gente). 

AVvXsEi055QZagL2 ehhjUEMO8z1y jfDyEL1rSP TfwnQCOfSW3K9PFJjZKyVNZWyVgHL3xSF0I9n6WSorboYTP4Mv LmgoFeKaLtrLm4IPU fGamtHElcmwtyDzWyUYf5uGUWvN3dQazNGxpdQpPSM5xBAneau89muCNu2eu4o UgTlbnBLwNjCz5OidcNkA=w183 h200

Ano passado, quando Broadwater contratou novos advogados para reverter sua condenação, eles alegaram que ela se baseou apenas na identificação de Sebold (na corte, durante o julgamento; Broadwater se lembra bem desse momento em que Sebold apontou pra ele na corte. Ele era o único negro  no local) e na análise microscópica dos pêlos, algo que hoje é visto como junk science. Em 1981, a promotora mentiu pra Sebold, dizendo que dois dos suspeitos na identificação eram amigos muito parecidos, que apareciam juntos nos line-ups. Quando eu li isso em Sorte, fiquei chocada: um suspeito pode fazer isso? Não, não pode. Era mentira. Sem falar que Broadwater nunca tinha sido acusado de nada antes. Aquele foi seu único line-up.

AVvXsEgMwA7A0iTMKb97fMmFWQfMtTvxuXYGiXpLJjDq3XmolW oq8YDo8a3ww4rKpz bWJ7ONvi1kopR9w50BTdKGh52 91g6P5IrMVuGF5IwJt5BJgzS49 PnGqD kfhrP77tnkwjfi6H XSFCcM1aTt yomW5uoCKf vFLn JGO 09yh21H6aMPXkkUB5Q=w194 h200
Em novembro do ano passado, Anthony Broadwater, 61 anos, foi exonerado da condenação . Isso é importante porque assim ele deixa de ser classificado como um “agressor sexual”. Ele sempre insistiu que era inocente . Inclusive, não conseguiu sair antes da prisão em liberdade condicional porque, nas audiências, não admitia sua culpa. 

AVvXsEiryl04egFqybOqqDYvrP9k2uqoSGXo F RzlcqTrYznHulhuFaNqdq2 4mO4KlWyYoJcCmns TTb3 VzsZow2qsTwpFbiBd46EEwB6s7WglgUMLCtImpwsFBYRARqOuOnhiQozzSD2ZvAcHyWCx2uOMGPlslZkQRFuu3gmOrzVYEkYCZcSoc vXYLDzw=w200 h186
Broadwater parece ser uma pessoa boa . Tudo que li sobre o caso indica isso. Em 1998, um ano depois de sair da prisão, por exemplo, ele conheceu Elizabeth. No primeiro encontro, deu a ela uma pasta com tudo sobre seu passado, e disse a ela: “Se você vai entrar num relacionamento comigo, isso é pelo que vou lutar pelo resto da minha vida”. Ela acreditou na sua inocência e se casaram. Mas nunca tiveram filhos porque ele não queria trazer uma criança para essa luta. Ele tentou provar sua inocência a todo custo. Passou em dois polígrafos. Tentou contratar o advogado que ajudou a absolver O. J. Simpson. Teve que se contentar com os piores empregos, já que, mesmo depois de ter cumprido sua sentença, era um agressor sexual registrado. 

AVvXsEjjO Ihv wTsZ6UsiUmoo81SDMlq8M54yTchuf6Gmc35 DMuUyZLq UM2 srEaQvw4EYYWe9otf9tkIW7AwYWpKIhIA b99oTpHQDTzDbM9MSDF8nUD6GfPo5NX1KCc7o7iRfvIpzXDe7cho ZWnW52FSEuyGReyvJK0HuTrexrEcw3lP7XIZHDBik7w=w200 h129
É interessante que, ao contrário de Broadwater, que é inocente, o produtor executivo Mucciante não é. Ele foi condenado duas vezes e cumpriu pena por fraude. E vê sua jornada para tentar ajudar Broadwater como uma tentativa de redenção  (outros dizem que na realidade Mucciante deu calote na produção do filme e está tentando ganhar dinheiro com um documentário sobre Broadwater).

AVvXsEj2BWfSUbql 6gNndtvb9eQo1EG9LmCbdovdF cvgn5U8pPa4gDL3CSUI LocODZbv7fTieaLGrjyJqiwUXDrivnu CQOLBG7iFplQ f7yyFkOkgoZ1yslCZzmuVPXCnoSrjHLAK0CpjcW1 LrG5motovyZfX JfpLR10vD52G2Zy SAczMkEpWjYxL3g=w130 h200
Muita gente culpou Sebold por mandar um inocente pra prisão, mas uma vítima não é responsável por investigar ou condenar alguém. Ela precisava, até para se sentir mais segura, que seu estuprador fosse encontrado e condenado (nunca foi). Só que, quase vinte anos depois do estupro, Sebold foi atrás da documentação do caso para escrever seu livro (Broadwater já tinha cumprido sua pena e saído da prisão; em Sorte, ela troca os nomes). Será que ela, nessa investigação, não notou as inconsistências que o detetive particular encontrou? (claro que em 1999 o método de análise de pêlos ainda era usado e amplamente aceito). Tipo aquela mentira da promotora?

AVvXsEjjL TTGPcxI6fKDW1QG4ZKmaHvrslPJ50oMFVK izQ88PHfEepu49jOEjuXQMvOVVIw6b7XuNfHsioeJgQFIhuH4w J 8gWcAdDmBJlJOblg3qaFjveblzqUl RMcuMEatv3dCvSPhtxlHROCJ RyCwlBqzcp8d88pc3mFH qP2E8TvTb8okHGHsYxg=w175 h200
Uma semana depois da absolvição de Broadwater, Sebold pediu desculpas  a ele, contando que, como uma jovem vítima traumatizada de estupro, ela confiou no sistema legal americano. Ela publicou um texto no Medium  (e o compartilhou com Broadwater antes de publicá-lo): “Fico grata que finalmente foi feita a justiça ao Sr. Broadwater.  Meu objetivo em 1982 era justiça, não perpetuar injustiça. E certamente não era alterar irreparavelmente, e para sempre, a vida de um jovem pelo mesmo crime que alterou a minha. […] Mas o fato é que 40 anos atrás, ele foi outro jovem negro brutalizado pelo nosso sistema legal com tantos erros. Sempre estarei triste pelo que foi feito a ele. […] Hoje, a sociedade americana está começando a reconhecer os temas sistêmicos no nosso sistema judicial que muitas vezes fazem com que a justiça para alguns venha a custo de outros. Infelizmente, isso não era um debate, nem uma conversa, nem mesmo um sussurro, quando eu denunciei meu estupro em 1981”. 

AVvXsEjOfNN EY9BEaYvNwrFH3YCH7Dj0tMzZNM0wwwoF4YU48WZZRAOwvJFBWMXTw8cR1pFSkbI55G ibdXpZFYjiIhncbl369ZZ9vyRRipOpb0skZpQI7dwPY5OiCgjc34g3bsY2q kMVSHRYoa8GJB2G3hwX o5spbCwnrXYKNw Ce8RnDlcBUJsaXPMHw=w200 h137
Ela ainda escreveu: “Vou continuar me debatendo com o papel que eu desempenhei sem querer num sistema que mandou um homem inocente para a prisão”. Broadwater declarou que esse reconhecimento de inocência, ainda que tão tardio, foi importante pra ele: “O pedido de desculpas vem sinceramente do coração dela. Ela admite o que aconteceu. Foi um grande alívio. Fazer esse pedido requere coragem. Aceito suas desculpas . Ela é uma vítima e eu sou uma vítima”. 

AVvXsEguuLqJ7kQkUVt2bCGpCBHKjLxWyauff1v qL5NgB7RAcimGsUa8ByPN nfCsPxpU4C9dqKCjB28Ghi513W8OD3SdaHqRKdNPxueKO4UsRYdaEuR5ikI7oLnKGZwDjD3CW9P2f oX8m 0jqBlsHcMSnID9bnNPtR0 p8wLldtzpVZbqA5S3p8foSqKZvw=w200 h189
Ano passado Sorte, que já vendeu mais de um milhão de cópias, foi retirado de circulação em todos os formatos. Até que a editora e a autora decidam como serão as revisões, Sorte não será atualizado nem terá novas impressões. A adaptação do livro para a TV foi cancelada. E um documentário chamado Unlucky (Sem Sorte, Azarado) já está sendo produzido  — este sobre a vida de Broadwater, que evidentemente pedirá indenização ao Estado. Espero que receba, e que seu caso ajude a revisar e evitar outras condenações injustas.

O post “A INJUSTIÇA DE SORTE” foi publicado em 1st February 2022 e pode ser visto originalmente na fonte Escreva Lola Escreva

Jovem ituano cai em golpe do emprego

#Itu412anos: Jornal de Itu entrevista Matheus Campos, melhor ator coadjuvante de 2021 pelo Prêmio Contigo! 2021