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Espaço Acadil | Vou falar agora sobre o Bentão…

Após conturbados sonhos, pleno de vozes estranhas, Bentão finalmente acordou, antes mesmo do sol nascer. Suado, ofegante e com a voz do narrador em sua cabeça. – Em minha cabeça? Perguntou, repetindo feito um papagaio o que eu acabara de falar. – Quê? Um papagaio, eu? Indagou de novo Bentão, repetindo, mais uma vez, como uma vitrola quebrada e confusa, tudo o que eu narro. – Pare! Quem é você? De onde veio? O que tá acontecendo? Estou louco?! Desatina nosso pobre protagonista, enquanto tateia suas mãos nas paredes escuras do quarto, à procura da porta do banheiro. Busca seu reflexo num espelho. – Como sabe o que estou pensando? Pensou ele. – Ele? Ele quem? Eu? Mal sabe ele, no seu estado aflito, que a porta do banheiro está um pouco mais à esquerda. 

Mais à esquerda?! E com um safanão, nosso herói encontra uma maçaneta. – Consegui! Brada falsamente, afinal, se não fosse a minha ajuda, ficaria a tatear paredes. – Fique quieto, voz doida, quem achou a porta fui eu! 

Olhou-se no espelho. O motivo? Até eu que sou um narrador onisciente desconheço. Talvez para se assegurar de que ainda é o Bentão. Pobre Bentão, ituano trabalhador, preso a uma cidade e um mundo que lhe é indiferente. Somente o narrador decidiu lhe observar, lhe prestigiar com uma atenção ínfima. Bentão, sozinho, comigo e o leitor. 

– Chega! Quieto! Quem que é esse leitor? Socorro! Ele mergulha seu rosto na água fria do chuveiro. Toma um café forte. Arruma-se depressa. E sai pelas ruas com o sol raiando. – Ei, eu posso ver que tá amanhecendo, sabia? Pensou, nervoso, nosso Bentão, desatento ao fato de que o leitor não está vendo o que ele vê. – Não estou nervoso! Ele replica, nervoso. – Baita de um narrador imparcial você é! Grita injustamente para mim, sem perceber os passantes assustados com sua conversa imaginária no meio da rua. – Pare de mentir, percebi eles sim! Mente o escandaloso personagem. 

Ele se senta na calçada fria. Confuso, triste. – Por que raios preciso de um narrador? Não sou um herói, sou só um jornalista! Minha vida não vale um filme, nem um romance, nada! Diz desacorçoado, exigindo o épico e o romântico e desconhecendo toda a fase literária do Realismo de Machado e Flaubert. 

– Pelo menos faça algo de útil, narrador, me diga se a Bruna gosta de mim… Clama nosso herói, sem saber que não posso interferir na história. – Tá interferindo a partir do momento que te ouvi, vozinha infernal! E eu não ouço esse tal de leitor, mas se ele tá lendo a minha vida, tá interferindo também! Como vou ter intimidade assim? 

Bentão, resignado, vai ao seu local de trabalho no jornal Periscópio. Seu chefe solicita um texto. Uma crônica? – Sim, o patrão pediu uma crônica, narrador. Achei que fosse onisciente!

Então Bentão sorri enquanto começa a escrever no computador. Ele percebe que personagem, narrador e leitor – é tudo uma questão de perspectiva! Pois bem, vou narrar agora sobre o Bentão… 

Jean-Frédéric Pluvinage 
Cadeira Nº 15 | Patrono: Salathiel Vaz de Toledo

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